Dessa maneira ninguém fica repetindo gestos, nem imitando
trejeitos, todas as pessoas são criadoras e ao mesmo tempo
mantenedoras críticas da tradição.
Por exemplo, uma
capoeirista perguntou: “mestre Jaime, o que é mandinga?” e ele
disse:
“Não tem ninguém que pode ensinar mandinga pois é
algo muito individual, pessoal e discreto; jamais outra pessoa
pode saber o que você pretende com a mandinga que você está
fazendo, porque senão ela deixa de ser mandinga, deixa de ser um
ato de surpresa, defesa e ludibriação; a mandinga hoje está
banalizada, vulgarizada no mundo da capuêra, ela não precisa
necessariamente de gesticulação dos braços; mandinga está no ato
da sua intenção, do seu pensamento, pode ser de ataque ou de
defesa; a gente tem que saber o porquê e o para quê está fazendo;
a gente não deve aceitar e nem praticar algo que a gente não
entende; mandinga é uma coisa que você vai construindo ao longo
dos anos, da sua trajetória e tem a ver com algo que jamais poderá
ser divulgado, jamais poderá ser visto; jamais poderá ser uma
coisa padronizada”.
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A crítica da tradição é uma observação valiosa do passado e um
importante reconhecimento do presente. Para mestre Jaime a capuêra
hoje é 30% do que era antigamente. A identidade da Paraguassú
implica não aceitar a legitimação da história de um saber
colonial, compõe o desafio à latência colonial, visto que engendra
a presença de multiplicidades epistemológicas e a possibilidade de
relações não aniquiladoras, em que se privilegia o diálogo entre
saberes.
Na Paraguassu a relação entre aprendiz e
mestre pauta-se na amorosidade.
É regida pelo diálogo
aberto, se fazendo valer da empatia recíproca para despertar no
outro a vontade de ser um ser humano melhor. Ela instiga a troca
de saberes oriundos das vivências de cada ser humano, assim, cada
pessoa contribui com o seu saber empírico, influenciado pela sua
cultura, seu meio social, e traz para o diálogo reflexivo e
crítico a sua subjetividade, podendo aí, existir uma identificação
com o outro, reforçando a relação de ambos, referenciada por
vínculos afetivos.
A filosofia de vida de Mestre Jaime
vai ao encontro da filosofia Ubuntu, que “consiste nos
princípios da partilha e do cuidado mútuo”. Há dois aforismos que
ilustram muito bem esta filosofia:
motho ke motho ka
batho - “afirma que ser humano é afirmar a humanidade própria
através do reconhecimento da humanidade dos outros e, sobre tal
embasamento, estabelecer relações humanas respeitosas para com
eles”.
feta kgomo o tshware motho - “significa que se
quando uma pessoa enfrenta uma escolha decisiva entre a riqueza e
a preservação da vida de outro ser humano, ela deve optar pela
preservação da vida.”
As pessoas geram sentidos, se
fazendo sentir, mergulhando em uma atmosfera de respeito,
compartilhamento e muita disposição, pois a imersão nos saberes
populares demanda atenção a uma nova forma de aprender, disposta a
quebrar os padrões negativos que todas e todos cultivamos diante
da liquidez, efemeridades e superficialidades que são algumas
relações (des)humanas. É prezado o exercício de não se sentir nem
mais nem menos que as outras pessoas. Há um contínuo estudo do
porquê que a outra pessoa interpretou algo de maneira diferente da
sua. Os encontros proporcionados pela Paraguassú promovem um
contato sincero entre as pessoas em um ambiente sem competição e
que propicia trocas sinceras.
Quando presenciamos os eventos
na Sede da Paraguassu, pudemos perceber que mestre Jaime envolve e
valoriza todas as pessoas de sua comunidade e, muitas vezes,
evidencia potencialidades de pessoas que seriam invisibilizadas
pelo sistema. Dessa maneira, a Paraguassu reconhece e revela
mestras e mestres da cultura popular, como por exemplo, mestra
Nenete, mestra Aurinda, mestre Risadinha e mestre Madeira. A
ancestralidade é manifestada na prática. Ao observar atos como
este e muitos outros, identificamos a coerência entre o que se
fala e o que se faz.
Na Paraguassu a capuêra é
cultivada no dia-a-dia como um modo atento e alegre de viver.